A relação entre a arte contemporânea e as questões urgentes do planeta numa conversa com o artista Ricardo Nicolau de Almeida.
Uma das características da arte contemporânea, já que aqui a tentativa de a definir acabaria por ser simplista e reducionista, é refletir e também pautar temas importantes a serem discutidos na atualidade. Sendo assim, um dos assuntos recorrentemente expressados através de abordagens e linguagens tão múltiplas como o campo das possibilidades artísticas é tudo o que engloba a natureza e também o que acaba por a ameaçar.
A conexão humana com o ambiente e a observação dos fenómenos e elementos da natureza são retratados desde as pinturas rupestres. Depois, a pintura de paisagem passou a ser extremamente emblemática e importante na história da arte. São vários os artistas que, durante muito tempo, procuraram nos cenários naturais os temas para desenvolverem os seus trabalhos e estilos: renascentistas, românticos e impressionistas, entre outros, tiveram expoentes de destaque no meio ao levar para as telas as plantas, os animais e as paisagens.
A partir dos anos 60, são vários os artistas que começam a produzir para além dos retratos da natureza. É o começo da criação de experimentações conceptuais ligadas à crítica ambiental com o intuito de gerar envolvimento e consciência ecológica. O alemão Joseph Beuys (1921–1986) defendia a atuação política pela criação de um objeto de arte consumível. No âmbito da ecologia, o artista chegou a propor uma ação para limpar o Rio Elba e a organizar um protesto que levou 50 estudantes a varrer uma floresta e assim chamar a atenção para a remoção de uma área verde que daria lugar a um campo de ténis.
Durante a mesma época, a artista Agnes Denes (1931–) fez várias performances e foi pioneira em ações relacionadas com a causa ambiental. Um dos seus trabalhos mais conhecidos foi feito em 1982, quando plantou um campo de trigo de dois acres no meio da cidade de Nova York.
Atualmente, continuam a ser muitos os artistas, nos mais diversos campos de atuação, que estão preocupados com a urgência e os efeitos das mudanças no clima. Olafur Eliasson (1967–), artista dinamarquês-islandês, tem um histórico de trabalhos fortemente ligados às consequências já sentidas na natureza relacionadas com o aquecimento global. Em 2015, o artista levou 12 blocos de gelo glaciar para a Conferência sobre Alterações Climáticas, em Paris. Intitulada “Relógio de Gelo”, a ação tinha como intuito tentar materializar todos os dados e informações sobre a degradação do planeta como consequência das ações humanas.
olafureliasson.net
Photo: Martin Argyoglo
O LIXO QUE (NÃO) VEM DO MAR
No Porto, o artivista – uma hibridização de arte e ativismo – Ricardo Nicolau de Almeida (Nicdealm) começou, em 2000, a recolher lixo nas praias e a transformá-lo em matéria-prima para o seu trabalho. Nascido em Nevogilde e tendo o mar como ambiente familiar desde a infância, Ricardo pôde observar a poluição crescente nas praias e decidiu que aqueles materiais fariam parte da sua expressão artística. “Senti que era preciso mostrar aquilo. Fiz a minha primeira exposição só com materiais recolhidos nas praias em 2014. E desde então não parei e cada vez mais vejo a urgência da mensagem e também o poder que a arte tem para o fazer.”
Quando questionado sobre suas influências, Ricardo conta que sempre foi fascinado pelo trabalho do pintor italiano Giuseppe Arcimboldo, cuja série “As quatro estações” inclui retratos que usam imagens da fauna e da flora na constituição das suas personagens. As esculturas, que remetem para máscaras e rostos, feitas por Ricardo também são formas elaboradas a partir de outras formas e o artista faz questão de usar os objetos exatamente como são encontrados. “Penso que assim as pessoas se identificam com eles e têm uma relação especial com os mesmos”, complementa.
Sendo a arte e a educação artísticas incentivadoras da renovação, da experimentação e da mudança, Ricardo também já se dedicou a desenvolver atividades nas escolas com crianças. A sua impressão sobre a experiência é de que o trabalho manual tira o caráter abstrato que os números sobre poluição e desmatamento podem representar. Entretanto, a contextualização do problema é importante para o seu entendimento e, por esta razão, o artista opta por começar a atividade com um vídeo que mostra a situação dos plásticos nos oceanos e como os animais são afetados pelo lixo acumulado ali. Outro aspeto importante do processo é o momento da recolha dos materiais em campo, que é quando as pessoas de facto se deparam com a realidade. “Uma praia mostrada por uma foto de cima pode parecer muito limpa”, alerta. Outra possibilidade é pedir às crianças para verem o lixo plástico que têm na própria casa e que o levem para a escola. Com os materiais em mãos, elas são desafiadas a fazer colagens ou esculturas.
Ricardo sente-se bastante positivo com a reação das crianças, que passam a limpar os jardins nos passeios da escola e a repreender os pais em casa por usarem tanto plástico. Atividades como as feitas por ele promovem a resolução criativa de problemas e o sentido crítico, podendo ser usadas em prol da formação dos alunos enquanto agentes de transformação e cooperação em questões necessárias e urgentes.
O artista julga fundamental neste tema fazer uma ponte entre a arte e a ciência. Ricardo trabalha há três anos com o biólogo do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), José Teixeira. Eles têm uma exposição em digressão pelo país, desde 2020, intitulada “Monstros Marinhos”, que se encontra agora patente no SMAS (Serviços Municipalizados de Água e Saneamento) de Sintra. Já esteve também em Ponte de Sor, em Matosinhos e no Porto e, ainda em maio de 2022, será inaugurada no Centro de Educação Ambiental de Gondomar.